Vendendo egoísmo



Na Vila Madalena, em São Paulo, o impacto do surgimento do edifício Mix 422 nos residentes e visitantes do bairro da Vila Madalena tem causado certo bafafá na região e nas redes sociais. A indignação daqueles que habitam e frequentam o bairro de gabarito predominantemente baixo, com muitas casas, sobrados e verde, localização privilegiada e alto custo, seria o bloqueio da paisagem pela edificação, em formato de lâmina. Mais comprido do que alto, ele forma um paredão que tira a visão do horizonte (ou pelo menos um lado dele) das casas vizinhas.  “Verticalizar a cidade já é questionável. Verticalizar e ‘vandalizar’ a vista então… Esse caso foi além da descaracterização do bairro.” - em um tweet de um morador do bairro.

São Paulo está em um período crítico do seu desenvolvimento. A expectativa reside na conclusão da revisão do Plano Diretor Estratégico, um dos componentes mais importantes para definir os rumos que o aumento da  cidade tentará tomar nos próximos anos. O destaque desta revisão aparentemente são as propostas visando resolver questões de tempo e qualidade do deslocamento e, não com a mesma vontade, habitação. O Plano pretende estimular a verticalização ao longo dos eixos do transporte massivo, existentes ou futuros, com edificações de maior gabarito, ou seja, permitir a construção de grandes edifícios ao junto das linhas de metrôs, trens e corredores de ônibus, e onde o fluxo do vai-e-vem cotidiano é maior. As medidas irão se basear em aproximar a população das regiões com oferta de empregos, ou pelo menos colocá-la mais próxima do transporte que irá levá-la até seu trabalho.

Que essa solução parece acertada não é, de fato, surpresa: verticalizar e adensar são as tendências mundiais nos grandes centros urbanos que enfrentam descontrole em seu crescimento. O problema para os paulistas são as brechas do PDE a serem aproveitadas pelo mercado imobiliário.

Raquel Rolnik, urbanista e professora da FAU USP, coloca em seu artigo "Um jogo de sombras" que, dos inúmeros fatores que tornam impossível atender as demandas gerais da população por infraestrutura e serviços públicos de qualidade, um dos principais é  que no momento nenhuma força política teria capacidade ou vontade de efetuar as reformas estruturais nos âmbitos político, econômico e social, necessárias para garantir o acesso do cidadão aos seus direitos na prática, principalmente nas camadas mais populares.

As diretrizes de políticas públicas e o crescimento desordenado da cidade ao longo da segunda metade do século passado, aliado aos interesses de dois setores principais, o mercado imobiliário e a indústria automobilística, fez (e faz) com que a cidade se expandisse muito mais horizontalmente do que o necessário. E custa ao governo muito mais levar e manter os direitos básicos aos locais recém povoados ao invés de analisar e remanejar usos e fixar pontos de equilíbrio, como por exemplo as ZEIS - zonas especiais de interesse social - em localidades que estão se formando ou que já sejam sedimentadas. E a conclusão da maioria dos profissionais da área é que ou muda o modelo de crescimento da cidade ou os problemas do cotidiano tomarão escalas absurdas (sim, bem mais absurdas do que  apartamentos de 15m² , congestionamentos de 200km de extensão e latrocínios por celulares).

Permitir, porém, que se construa edifícios que utilizem 4 vezes o tamanho do terreno em área construída ao longo dos eixos de mobilidade, com regras já apontadas como insuficientes para conter a gana do ramo imobiliário favorece à todos exceto quem mais necessita de moradia e transporte, aqueles de baixíssimo poder aquisitivo. Sem uma estruturação capaz de evitar a destinação da oferta dessas moradias somente a quem tem dinheiro, irá provocar, primeiro, maior valorização do preço já abusivo do metro quadrado e posteriormente intensificará a expulsão das camadas pobres para periferias ainda mais distantes. Um processo chamado pelos urbanistas de gentrificação, ainda recente no Brasil, mas já bem experimentado por grandes cidades européias e americanas.

Bolsões de sobrados ou mansões em plena cidade, como a Vila Madalena ou o Pacaembú, são verdadeiros tesouros para seus proprietários, na mesma lógica dos terrenos espalhados pelo centro da cidade e utilizados como estacionamentos, quietinhos, apenas aguardando aquele negócio da China. Caso os responsáveis pelo Mix422 tivessem batido na porta da casa da vovó na Vila Madalena, propondo um negócio milionário por seu lote, estaria ela preocupada com o céu do vizinho? O fato é que a ganância não é só do mercado imobiliário, porque ele não é algo abstrato, é composto por pessoas, que pensam e falam e existem, de verdade, do qual invariavelmente todos fazemos parte.

Assim que a revisão do PDE for concluída, haverá uma corrida para reservar os melhores lotes nessas localidades. E no momento oportuno para o investidor, verticalizar. E os investidores menores seguem os maiores: a vovó poderia ter alguém morando em sua edícula ou uma segunda casa para alugar (que foi a vendida),  ou o senhorio em Itaquera, que resolveu aproveitar a onda, passar tudo adiante e voltar para sua cidade natal. Seus inquilinos estão morando provavelmente uma ou duas estações mais longe, onde o valor do aluguel foi compatível com seus ganhos. E os senhorios dessa região mais distante, percebendo o aumento da procura, aumentam seus aluguéis. E os inquilinos que já moravam lá, foram 2 estações de trem mais longe… e assim, sucessivamente, essas pessoas  ficam cada vez mais distantes de tudo e a cidade cresce.  

Por outro lado, o que seria da vovó diante de uma força tão brutal que obriga uma das maiores metrópoles do mundo, com má-vontade, a vasculhar toda uma barragem que tenta segurar o ímpeto dos maiores, como um imenso volume de água, procurando apenas uns poucos furos para vazar e ameaçar toda a cidade? O que são dos moradores que habitavam perto do estádio em Itaquera, das novas estações de metrô ou as futuras, de qualquer intervenção pública que se traduza em valorização do entorno?

A segregação espacial não está escondida em pensamentos ou atos facilmente despistáveis, como os de preconceito. Ela é visível e paupável, ultrapassa a barreira do abstrato e se consolida como a expressão máxima das políticas higienistas. O automóvel, atualmente o divisor entre quem pode um pouco mais e quem não pode quase nada, mostra o embate de dois grupos opostos, com aspirações de locomoção distintas e atualmente competitivas - ah, e quem pode muito não anda: voa; a questão habitacional é outro ponto de discórdia, onde as diferentes classes parecem não falar o mesmo idioma. E parecem morar em países vizinhos, inclusive pela distância percorrida para se chegar em casa.

O pouco convívio entre as classes sociais provoca o estranhamento e falta de empatia aos temas comuns da população, além de agravar a violência urbana. Não é surpresa uma parte temer frequentar o mesmo shopping center que a outra. Ou reclamar que manifestação causa trânsito. Ou duvidar se está mesmo em um aeroporto ou em uma rodoviária. Ou não querer uma estação de metrô próxima à sua residência - essa é um pouco surpreendente sim, o cúmulo do paradoxo da atualidade.

É necessário que a população perceba que melhor do que vender o produto do esforço de uma vida inteira, fugir e repetir o ciclo de São Paulo em uma cidade menor, é acolher a região em que habita. Frear desde já o avanço inescrupuloso da especulação que se intensificará a partir das novas demarcações se faz absolutamente necessário e urgente nesta segunda “chance” do Plano Diretor Estratégico da cidade de São Paulo. Do contrário, será cada vez mais raro escutar alguém dizer que morou a vida inteira em uma única residência, um dos reflexos do movimento contínuo da rotatividade explorada por mercados que se utilizam destes fenômenos apenas para incrementar seu lucro, e que reduz drasticamente o bem estar que o cidadão tem por direito.  
                                                                                                                                                          D.O.


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